domingo, 4 de setembro de 2011

Reticência

Só ela sabia a falta que ele fazia. E bem, só ele sabia o quanto insuportável era não tê-la por perto para beijar-lhe o topo da cabeça e apertá-la como se fosse boneca de pano. Ambos precisavam um do outro, mas não cediam o orgulho, o maldito orgulho que criava a grande barreira entre os dois. Ela do lado de cá, isolada em seu pequeno quarto, encolhida entre os lençóis e abraçada ao seu travesseiro, seu corpo gélido, era a ausência dele. Ele do lado de lá, em um barzinho com os amigos, perdido em devaneios, rodeado de pessoas mas ainda sim sentia-se sozinho, como se faltasse algo; faltasse alguém. Na verdade faltava ela, ele só precisava admitir para si mesmo. Vez ou outra uma guria aqui ou ali lhe dava bandeira, soltava uma indireta ou dava uma piscadela em sua direção. Pelos amigos, fingia se importar com essas fulanas que apareciam e acabava por beijar alguma no fim da noite, mas logo sentia o gosto amargo que era beijar outras  bocas desconfortáveis e desconhecidas que não fossem a boca daquela moça temperamental de tamanho miniatura que lhe roubara o coração e era tão doce que o fazia se perder todo quando a mentalizava. Ela cabia perfeitamente em seu abraço, tão pequena que ele a cobria toda com os braços. Ela tinha cheiro de morango, seu perfume era adocicado e suave, o fazia querer fungá-la a todo instante. Ele tinha as mãos quentes e macias, a fazia querer se aquecer sempre que fazia frio. Ele a provocava só pra vê-la irritada, dizia que ela ficava ainda mais linda quando brava. Ela, por sinal, detestava isso, mas acabava rindo e rendendo-se aos encantos daquele rapaz impossível de não se apaixonar a cada segundo. Tinham brincadeiras bobas, adoravam estar perto um do outro pelo simples fato de se sentirem confortavelmente bem. Ela sentia que poderia confiar nele, e se parasse para contar a história da sua vida ele simplesmente pararia para ouvi-la, e como se não bastasse dividiria as dele com ela, também. Trocavam mensagens no fim do dia, pela manhã e às vezes até pela madrugada. Ela o fazia querer ser o melhor que ele podia ser, exprimia o que de melhor ele tinha para mostrar. Ele a fazia querer sonhar e deitar sobre seu peito era como caminhar sobre nuvens.

Conversam por entre o silêncio, calavam-se para ouvir o que o coração tinha a dizer. Há quem diga que só podia-se ouvir batidas e a pulsação do sangue bombeando as veias, mas para eles era muito mais do que isso; ia além, era a conversa que só ambos entendiam. Ele adorava a careta que ela fazia quando mordia a ponta do seu nariz. Ela reclamava da dorzinha que sentia, mas gostava. Apreciava todo o toque dos dedos dele sobre sua pele, fechava os olhos pra sentir minuciosamente o carinho que ele transmitia para ela. Dividiam de potes de sorvetes a segredos bem guardados. Era uma troca justa: dois corpos, um abraço. Dois corações, a mesma batida. Duas mentes, as mesmas ideias. Era como se fossem uma única pessoa, mas no plural, compreende? Não tinha aquela coisa de serem opostos. Pelo contrário, eles eram bastante iguais por sinal. Tinham suas desavenças, suas discórdias, mas nada como um beijo pra acabar com uma discussão e tudo ficava bem. Sabiam deixar o orgulho muitas vezes de lado, mas por outras acabavam deixando tomar conta e derrubá-los. Ela não dizia todos os dias, mas precisava dele como precisava do oxigênio para manter o ar em seus pulmões. Precisava dele para equilibrá-la, e com sua força não deixá-la cair. Mas ela dizia que o amava, nas horas mais inesperadas, às vezes tão anciosa telefonava pra ele no meio do dia pra falar - mesmo envergonhada: "ei, liguei só pra dizer que te amo". Ele ria ao telefone, e a fazia imaginá-lo sorrindo, talvez com os olhos brilhando e o coração acelerando. Ela amava o cheiro dele em sua roupa depois que se abraçavam, ficava um longo tempo cheirando a mão pra intensificar a lembrança dele. Era bonito de se ver, os dois juntos, amigos, amantes, cúmplices...

E veja como estão agora, amargurados e agarrados ao orgulho que só os separam, só os fazem sofrer. Eram mesmo muito iguais nesse requisito. Ambos queria ceder e procurar o outro, mas recuavam nas tentativas. Esperavam um pelo outro, mas não queriam ser os primeiros a dar o passo. Muito desperdício de tempo e amor.
Para ele, não valia de nada procurar as características que só ela possuia em outras tão vazias. Elas se submeteriam aos desejos dele facilmente, muito diferente dela. E era por isso que ele a amava tanto; esse temperamento forte que ela tinha, aquele ar de independência e individualismo. Ela não tinha essa coisa de fingir gostar de algo porque ele também gostava, na verdade era difícil os dois não terem os mesmos gostos, mas quando acontecia de terem opiniões diferentes, ela preservava a dela sem que ele influenciasse ou modificasse. Em geral ela sabia exatamente como conquistá-lo do seu próprio jeito um pouco mais a cada dia. Ela sempre tinha suas fases e na tpm continha uma carência que só ele sabia curar. Já ele... bem, tinha tudo o que ela sempre idealizou em um cara, digamos que ele sabia ser um cavalheiro à moda antiga em pleno século XXI. Ele era uma espécie de homem-em-extinção; muito raro encontrar caras do jeito que ele era. E ela tinha sorte de tê-lo encontrado e como se não bastasse ter sido a única a conhecê-lo tão intimamente. Ambos tinham a essência que o outro buscava em alguém. Ambos se encontraram para não se perderem, mas o que estavam fazendo um distante do outro? Quão tolos são... O destino havia unido esses dois, e não era da vontade dele que se separassem já que foi um tremendo trabalho para que eles se esbarrassem e entrassem um na vida do outro. Que a separação fosse vírgula, reticência dando continuidade a história deles. Não podia parar, não iria parar. Se fosse pra parar, que fosse com a bobeira e o orgulho desnecessário. Ela lembrava que nenhum outro beijava como ele, abraçava como ele, fazia palhaçadas como ele, não enlouquecia ela como ele. No entanto, ela decidira que ele seria o homem da sua vida. Ela, a mulher da vida dele.

Como arame farpado a ausência dele a dilacerava, e talvez nesse caso a saudade fosse ainda maior que o orgulho que ela sentia. Cansada de não saber notícias dele, toda trêmula ameaçou pegar o telefone. No impulso disca o número dele, sabia de cór. Nem que fosse pra ouvir sua voz, mesmo que tão tarde, ela sentia que deveria ligar:

"Alô?" - ele atende.
"Oi, sou eu... Me desculpa ligar à essa hora, sei que você detesta que te acordem. E não, não precisa falar nada. Só... me ouve. Sei que eu não deveria estar te ligando, sempre fui tão orgulhosa, sempre esperei que você me ligasse pra me acordar, como estou fazendo agora. Mas é que, fiquei o dia inteiro pensando no que você poderia estar fazendo, em quem estaria pensando. Pra ser mais exata, se era em mim que estava pensando, e se também lembrou que hoje era o nosso dia.
Não... eu não esqueci. E hoje fiquei mais nostálgica do que nos outros dias, pra variar. Tentei me distrair, fugir pra não lembrar que hoje seria um daqueles nossos dias em que nos isolaríamos do mundo, colocaríamos uma comédia romântica e faríamos um cinema à dois. Você lembra que não conseguíamos ver o filme até o fim? Se não pegávamos no sono, nos beijávamos sem parar. Ok, a segunda opção era bem mais provável. Sei que não deveria estar dizendo isso, mas confesso que ainda tenho as suas mensagens no meu celular, e vez ou outra, quando não dói tanto, eu me pego relendo-as. É como se eu voltasse no tempo e revivesse o tempo em que elas foram enviadas pra mim, e mesmo não tendo as que eu enviei aqui, lembro exatamente quais foram as minhas mensagens pra você. É masoquismo, eu sei. Eu havia parado de ouvir aquela música que era nossa, porque também doía. Mas hoje eu passei o dia aqui no meu quarto, coloquei ela pra tocar no meu celular enquanto relia suas mensagens. Sabe aquele filme que era o nosso preferido? Então, eu coloquei ele pra assistir hoje, sozinha mesmo. Pela manhã, enquanto revirava meu guarda-roupa encontrei um casaco seu, que você esqueceu aqui naquele dia em que pegamos uma chuva quando você veio me trazer em casa e me emprestou para que eu não passasse frio. Desde aquele dia você deixou aqui, eu nem lembrava mais, mas encontrei entre as minhas roupas e não pude deixar de sentir o seu cheiro, o seu perfume. Era como se eu pudesse sentir um pouquinho de você aqui comigo, até da sua voz grave eu lembrei tão nítida. Me atrevi a vestir-me no casaco, ficou grande, obviamente. Era assim que você gostava, e dizia que eu ficava linda. Hoje fez bastante frio, não foi? É... e foi por isso que preferi me aquecer no seu casaco e no meu masoquismo, lembrando de tudo aquilo que eu deveria esquecer. Mas só por hoje, eu deixei que as lembranças me nutrissem e me tomassem por inteira. Nem fiz esforço para evitá-las mais, não hoje. Custei à dormir, e quando conseguia pegar no sono, eu sonhava com você e acordei pior do que quando fui dormir, porque sabia que nada havia mudado. Nenhuma mensagem sua no meu celular dizendo que sente a minha falta, nada de você no meu portão ou chamada perdida sua. Tudo bem, você não é obrigado a fazer essas coisas, mas dói pensar que talvez você já não sinta tanto a minha falta, ou ainda pior, que talvez você tenha encontrado uma garota mais comportada, mais interessante e menos orgulhosa. Se você estiver com alguém aí, dá um beijo na testa dela e diz que ela tem sorte. Peço desculpa por ser sempre tão birrenta e querer estar certa mesmo quando eu não tinha razão. Por muitas vezes eu ter mandado você sair de perto, ou te xingado e até dar alguns tapas quando irritada. Na verdade eu sempre quis que você ficasse ainda mais perto de mim, e se mandava sair era só birra e charme. Você sabe como sou, me conhece mais do que eu mesma. Desculpa por eu não conseguir controlar meu ciúmes e ficar seca com você por conta disso, por bobeirinha. É que eu sempre tive tanto medo de você se interessar por outra pessoa, sempre tive tanto medo de perder você. Desculpa as minhas manhas, as minhas manias. Desculpa ser histérica algumas vezes, ser do contra e fazer tudo aquilo que você odiava só pra te ver bravo. Olha, acho que você nem tá me ouvindo direito, né? Eu sei que já é muito tarde, desculpa ter acordado você ou ter atrapalhado a sua noite. Mas é que... (ela suspira) eu só liguei pra dizer que eu ainda lembro, e que sinto falta e vou me arrepender logo em seguida por ter cedido o meu orgulho, já que você não fez isso. Mas que seja, seu casaco está aqui, eu não me importo se você quiser pegá-lo e..."
"Eu tô indo aí."
"Mas essa hora? Só pra pegar o casaco? Não tem problema se quiser vir amanhã..."
"Não, sua tonta. Pra pegar meu coração de volta, e a dona dele."

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"Dê atenção ao que tem sintonia com você. E toque sua vida, sem agredir."

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